UM PEQUENO E DESCONHECIDO RIO DO ESPÍRITO SANTO
Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 08 de março de 2020
Um pequeno e desconhecido rio do Espírito Santo
Um pequeno e desconhecido rio do Espírito Santo
Arthur Soffiati
Hoje, não sabemos mais sequer o nome
dos rios grandes, quanto mais dos pequenos. Existem buracos negros de
conhecimento entre o rio Paraíba do Sul e o rio Jucu, já na grande Vitória. O antigo
sertão de São João da Barra, hoje município de São Francisco de Itabapoana,
continua sendo desconhecido até para seus governantes e moradores. Manoel
Martins do Couto Reis, entre 1783-85, registrou o rio Guaxindiba em seu
detalhado mapa, mas não o descreveu no seu relatório[1].
Maximiliano de Wied-Neuwied[2],
em 1815, e Auguste de Saint-Hilaire[3],
em 1818, nada escreveram sobre ele. J.J. Tschudi, em meados do século XIX,
hospedou-se na Fazenda São Pedro e ignorou o rio Guaxindiba[4].
Saint-Adolphe, também em meados do século XIX, registrou dois rios com esse
nome: um na baía de Guanabara e outro no Espírito Santo[5].
Todos pulam do Paraíba do Sul para o Itabapoana e desse para o Itapemirim. No
máximo, nota-se a lagoa do Siri. Nada sobre os córregos de Manguinhos,
Barrinha, Buena, Tatagiba, Guriri, Marobá, Boa Vista, Tiririca, Mangue, Pitas, Dantas.
Partindo do Itabapoana, chega-se
ao rio Itapemirim. Deste, vai-se aos rios Iconha e Benevente. Um breve registro
sobre o riacho Iriri foi feito pelo príncipe Maximiliano[6].
Várias informações sobre os arredores de Benevente pela importância do seu
porto para a economia de importação e exportação são deixadas por Saint-Hilaire[7].
Saindo de Benevente, Maximiliano de Wied-Neuwied alcançou Meaípe como se não
existisse uma costa recortada e coberta de vegetação nativa entre ambos.
Auguste de Saint-Hilaire ainda observou que atravessou florestas numa região
montanhosa, já pontilhada com cabanas, até a aldeia de Meaípe[8].
Nenhum naturalista europeu, incluindo Saint-Adolphe com seu célebre dicionário,
anotou o pequeno rio Meaípe, junto ao qual, na margem esquerda, ergue-se a
aldeia de pescadores.
Hoje, o contexto histórico
contribui ainda mais para o esquecimento dos rios. Se os povos indígenas
batizavam todos eles, por mais insignificantes que fossem, os ocidentais
nascidos na parte da América chamada Brasil, desbatizam até mesmo os grandes
rios pouco a pouco, como escreveu Gilberto Freyre em 1937[9].
Esse fenômeno deve acontecer com outros países criados pelo ocidente fora da Europa.
Até mesmo na Europa, ocorre esse esquecimento.
Foz do rio Parati
O trabalho do historiador é, em
parte, resistir ao esquecimento. Cabe a ele uma tarefa de arqueólogo,
arrancando do solo, dos arquivos, da memória documentos e lembranças abandonados.
Tem sido esse o meu trabalho como eco-historiador ou historiador ambiental.
Passamos a toda velocidade sobre pontes e bueiros abaixo dos quais fluem cursos
d’água. Alguns estão secos completamente o ano inteiro. Outros só fluem nas
estações chuvosas. Alguns mais foram varridos para baixo do tapete, como o
Anhangabaú, em São Paulo, canalizado e capeado. Ou como o córrego do Leitão,
com igual sorte em Belo Horizonte[10].
Rio Parati na localidade de
mesmo nome
Quando das chuvas torrenciais,
leitos secos ou abrigando filetes de água poluída engordam com vigoroso fluxo
que carregam pessoas, carros e casas. A imprensa apenas notícia que um rio
encheu e matou pessoas. A televisão assesta a câmara para o local e informa que
aquele rio (nome omitido ou esquecido) causou estragos ao encher. Se tiveram
nomes no passado, até mesmo assinalados em placas já retiradas, hoje são
somente rios, riachos, córregos, valas.
Rio Parati na zona rural
Eis por que, partindo do rio
Itapemirim a pé ou de carro, localizei cursos d’água diminutos até o rio Iconha
e desse até o rio Benevente. Saindo do segundo em direção a Piúma, atravessei a
costa acidentada que Saint-Hilaire registrou e notei, dentro de um carro que
propositalmente andava devagar por conduzir um pesquisador, algo que parecia um
riacho na extremidade oeste do lugar com nome de Parati, perto de Ubu, mais
precisamente nas coordenadas 20°48’16” S e 40º36’15”. Fui até sua foz. A água
corria para o mar. Pergunto-me se os viajantes europeus que por ali passaram no
século XIX não o viram. A vasão deveria ser maior para não ser visto. Mas, com
tanto rio expressivo, esse e outros não mereceram registro.
Estrutura abandonada no rio
Parati
Subi seu curso dentro da área
urbana. Ele estava fechado por vegetação plantada e emaranhada a ponto de
esconder a água da visão. A rodovia ES-060 atravessa seu leito sem ponte.
Apenas uma simples manilha permite que ele chegue ao mar.
Aspecto do manguezal do rio
Parati (mangue vermelho)
Do outro lado da estrada, já se
ingressa em área rural cercada com arame farpado e bois pastando. Lá, o riacho
Parati (nome que lhe dei por desconhecimento de nomeação conhecida pelos
moradores) esbarra numa estrutura de concreto abandonada indicando talvez a
intenção de regular ou represar seu curso. A água se apresentava poluída e
quase sem movimento.
O manguezal do rio Parati (mangue branco)
E o mais surpreendente foi
encontrar nesse trecho, exemplares de mangue branco e vermelho em quantidade
suficiente para caracterizar um pequeno manguezal. Em solo firme, na margem
direita, grandes tocas revelavam a presença do caranguejo guaiamum. As
condições mostravam-se adversas ao caranguejo-uçá[11].
Toca de guaiamum no rio Parati
Na verdade, não encontrei mais
um rio, e sim fragmentos dele. Atividades rurais na parte alta do seu reduzido
curso e urbanas no seu trecho final desfiguraram sua fisionomia. Tenho a
intenção de retornar ao Sul do Espírito Santo em breve. Talvez eu não encontre
mais o manguezal. Talvez eu não encontre mais sequer seus fragmentos. Terei
vontade de afixar uma placa informado que ali existiu um rio.
[1] COUTO REIS, Manoel Martins do. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis
– 1785, 2ª edição revista e atualizada. Campos dos Goytacazes/Rio de
Janeiro: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima/Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro, 2011.
[2] WIED-NEUWIED, Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp,1989.
[3] SAINT-HILAIRE,
Auguste de. Viagem pelas Províncias do Rio
de Janeiro e Minas Gerais.
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975.
[4] TSCHUDI, J.J. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São
Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1980.
[5] J.C.R. Milliet de
Saint-Adolphe. Dicionário geográfico,
histórico e descritivo do Império do Brasil. Paris: Vª J. -P. Aillaud,
Guillard e Cª, 1863.
[6] Ibidem.
[7] SAINTE-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce.
Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: Edusp, 1974.
[8] Ibidem.
[9] FREYRE, Gilberto. Nordeste. Rio de Janeiro: José Olympio,
1961.
[10] BORSAGLI, Alessandro. Rios invisíveis da metrópole mineira.
Belo Horizonte: edição do autor, 2016.
[11] SOFFIATI, Arthur. Os manguezais do sul do Espírito Santo e do
norte do Rio de Janeiro. 2ª edição revista, ampliada e atualizada. Campos
dos Goytacazes: Essentia, 2014.
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