RIOS DE PORTUGAL 4- LIS


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 12 de janeiro de 2020

Rios de Portugal 4- Lis

            Viajando de ônibus de Porto a Fátima, cruzei um valão. Meu ímpeto foi perguntar à minha vizinha de assento o nome dele. Com cara de poucos amigos, ela já havia conversado em espanhol e inglês fluentes com duas pessoas no seu estupendo celular. Logo em seguida, falou em português do Brasil com outro interlocutor por via eletrônica. Parecia comissária de bordo e certamente não saberia me fornecer a informação que eu desejava.

            Fiz o registro mental daquele curso d’água e pesquisei ao chegar a Fátima. Encontrei o pequenino rio Lis, abaixo do rio Mondego, que bem poderia ser a vala que cruzei na rodovia. Ele nasce a 400 metros de altitude e corre 40 quilômetros até desembocar no mar, abaixo da foz do Mondego. Sua nascente se situa no maciço calcário Estremenho, o segundo maior reservatório de água do país. Existem, no local, várias nascentes. A variação sazonal na nascente do Lis é acentuada, em meio a uma rica flora.

            O médio Lis corre numa planície aluvial conhecida como Campos do Lis. Em passado longínquo, sua foz situava-se a 3 quilômetros ao norte da atual, próxima à praia do Pedrogão, como mostra uma antiga pintura rupestre no interior de uma caverna. Naturalmente, ela se deslocou para o sul pela acumulação de sedimentos marinhos e fluviais. 

            Nenhuma novidade em constatar que o Lis apresentou maiores dimensões no passado. Ele era navegável em toda sua extensão. Durante a idade média, ele gozou de grande importância por permitir o acesso de embarcações aos pinhais de Leiria, que forneciam madeira para a construção das naus com as quais os portugueses partiram para a conquista de terras em outros continentes através dos oceanos Atlântico e Índico. Ainda no século XIX, importantes estaleiros estavam instalados nas margens do pequenino rio. Também em suas margens foram construídos moinhos impulsionados por suas águas e que promoviam a moagem de trigo e milho, além da primeira fábrica de papel da cidade de Leiria.

            A capacidade do rio de transportar sedimentos era grande, reduzindo o leito no sentido horizontal e vertical, provocando assoreamento e transbordamentos que destruíam lavouras e habitações. A ação antrópica acelerou esse processo natural. Já em 1880, concebeu-se um molhe na foz do rio. Apenas da década de 1950, ele foi construído em sua foz. A obra foi vantajosa para a agricultura, mas alterou a linha da costa. O espigão do norte passou a reter areia, enquanto o do sul erode a praia. Senti-me em Barra do Furado, onde, exatamente, o espigão da margem esquerda retém areia, enquanto, à direita, o mar corrói a praia e desalinha a costa. Ainda como em Barra do Furado, os espigões não impediram o entupimento da foz do Lis.

            Lá se operou o mesmo que aqui: solucionou-se um problema gerando outro, que, por sua vez, tenta-se solucionar hoje. Lá como aqui, pois essas soluções mirabolantes da engenharia não conseguem divisar o todo e geram impactos ambientais. Os espigões na foz do Lis foram encurtados de 80 para 70 metros, mas os espigões na foz do rio Mondego foram ampliados e passaram a reter a areia necessária às praias ao sul do Lis, já que a corrente predominante se desloca de norte para sul. Antes de se alcançar o Lis, na praia de Leirosa, um pequenino curso d’água chega ao mar, parecendo temporário. Ao norte dele, também foi construído um espigão que intercepta areia. 

            Além do mais, o Lis foi canalizado em toda a sua extensão. Daí a aparência de vala. Sua seção tem a mesma largura, embora ela possa variar em pontos distintos do curso. Em Leiria, suas margens foram ajardinadas, dando a impressão de que se abriu um canal como os de Santos, por exemplo. Ao olhar frívolo e superficial do turista e do morador, a paisagem pode parecer bela, mas é dramática. Em Leiria, o Lis recebe a contribuição do rio Lena. Do Lis, partem canais de drenagem e irrigação, assim como 26 açudes em suas margens.

Outro problema que assola a bacia do Lis é a poluição. Da nascente à foz, os rios da bacia são poluídos tanto por resíduos líquidos como sólidos. Não existem estações de tratamento de esgoto. A agricultura contribui com insumos químicos. A mineração, os aviários, os matadouros, os curtumes, as indústrias dão uma enorme contribuição para agravar mais ainda o problema. Ao contrário da região intertropical, chove mais no inverno que no verão na zona temperada. Com pouca vazão de verão, a concentração de poluentes aumenta. No momento, a grande preocupação deriva das 400 suinoculturas na bacia do Lis. 

O lado bom da bacia, se é que ele existe, é a sobrevivência de caniços, freixos e salgueiros em suas margens. A biodiversidade de aves e de peixes, com todos os problemas, ainda é expressiva.

O rio Lis me evocou o riu Una, na Região dos Lagos. Com nascente a 130 metros de altitude e 23 quilômetros de extensão, o Una atravessava uma zona de banhado e desemboca no mar. Seu curso também foi todo canalizado, adquirindo o formato de um M. A concepção de domesticar rios foi exportada para países europeizados e alterou perigosamente os rios e lagoas.

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