O MANGUE NA FICÇÃO BRASILEIRA DE 2019
O
mangue na ficção brasileira de 2019
Arthur
Soffiati
Tenho minhas dúvidas sobre o
conhecimento do ecossistema manguezal pelos autores que mais o retrataram em
suas obras, como João Cabral de Melo Neto, Josué de Castro e Osório Peixoto. Na
poesia de João Cabral, o mangue é associado à pobreza e à degradação humana. Os
poemas do famoso autor pernambucano parecem atribuir ao manguezal a condição
natural de ambiente sujo. Na verdade, o manguezal, em seu estado natural, é
limpo. Os processos de decomposição de matéria orgânica em seu interior lhe conferem
uma lama negra com odores nem sempre agradáveis às pessoas em busca de pontos
turísticos inodoros. Essas caraterísticas naturais levam o censo comum a
associar manguezal à podridão, quando, na verdade, são as ações humanas que o
contaminam com esgoto e lixo.
No final da vida, João
Cabral de Melo Neto reconciliou-se com o manguezal num poema sobre o rio
Parnamirim de sua infância. Nele, o manguezal está íntegro e acolhedor: “Mas
havia o andar pela lama,/amor e medo, pedra e mel,/e era o fim mesmo da
aventura/esse andar na lama: ela tem/carinho de carne de coxa/e das mucosas que
contém,/certa textura feminina,/acolhimento de mulher,/e certa qualidade
viva/que a faz lasciva para o pé.” (Crime
na calle Relator.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987). João Cabral não é o primeiro escritos
a associar o mangue à mulher. Amor ao caminhar na lama por ser macia e pegajosa
e algo vaginal. Medo pelo que pode se esconder aos pés, como pedras e cacos de
vidro. Carne de coxa, ou seja, carne macia. Mucosas femininas, acolhedoras e
lascivas.
Josué de Castro,
por sua vez e no seu único romance – Homens
e caranguejos – (Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001), enfatiza o caráter infecto do
manguezal, associando-o à pobreza, mas, ao mesmo tempo, como local de onde
nasce uma revolução dos pobres. Por fim, Osório
Peixoto Silva ambienta toda uma trama no manguezal do rio Paraíba do Sul. (Mangue.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1981).
Na literatura
brasileira atual, a palavra manguezal
aparece com certa frequência, nem sempre de forma apropriada. Num de seus
romances, Elvira Vigna, uma das
maiores escritoras da atualidade e já falecida, insere um mangue em plena
cidade de São Paulo. Para muitas pessoas, uma área úmida, lamacenta e com algum
tipo de vegetação espontânea constitui um mangue. Nesse sentido, pelo menos a
palavra, é comum na literatura. Em outro sentido, também é comum: mangue
associado a uma zona de prostíbulo nas cercanias da estação principal da rede
ferroviária Central do Brasil, no rio de Janeiro. Trata-se de uma parte da
cidade erguida sobre área de manguezal por meio de aterro e de drenagem, tendo
como marca maior o Canal do Mangue. Nele, não há qualquer exemplar de uma
espécie de mangue. A água é muito poluída principalmente por óleo. Mas o nome
ficou como referência a uma grande zona pantanosa coberta de manguezal na baía
de Guanabara. Na condição de grande prostíbulo, ela foi retratada em prosa,
verso e pintura por Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Di Cavalcanti e Lasar
Segall pelo menos.
No livro de
crônicas O corpo encantado das ruas
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019), o historiador e escritor Luiz Antonio Simas, numa breve passagem,
escreve que “... palmeira do mangue não vive na
areia de Copacabana”. A alusão se assemelha a um ditado. Não se sabe se o autor
se refere às palmeiras que, ainda hoje, ornam as margens do Canal do Mangue ou
se ele confunde alguma planta típica de manguezal com palmeira. Evidentemente
que nenhuma das duas nasce nas fervilhantes areias de Copacabana.
Canal
do Mangue em foto de 1941 – Acervo Arquivo Nacional
Joca Reiners Terron
é, ao lado de Elvira Vigna, um dos mais preeminentes ficcionistas brasileiros
da atualidade. Seu mais recente romance, A
morte e o meteoro (São Paulo: Todavia, 2019) é ambientado numa Amazônia que
não existe mais e trata de uma nação indígena sem contato com o mundo ocidental
e que, agora, corre risco de extinção cultural e física. Trata-se do primeiro
caso de exílio coletivo. Esse povo se transfere para o México a fim de fugir da
extinção e lá, contraditoriamente, pratica o suicídio coletivo. O indigenista
que primeiro fez contato com esse povo, no tempo em que a Amazônia ainda
existia, escreve: “... tropiquei nas raízes assombrosas que saíam do mangue por
onde seguiram.”. Ele se refere às matas de Igapó, que também são confundidas
com o manguezal. De forma mais justificada que qualquer área pantanosa urbana
ou rural, pois as árvores das matas de Igapó têm os pés mergulhados na água
permanentemente, desenvolvendo adaptações semelhantes ao gênero Rhizophora.
Mata de Igapó na Amazônia. Foto Antonio
Sagesse
Raimundo Carrero
é um pernambucano legítimo porque, além de nascido em Pernambuco, integrou o
Movimento Armorial, do grande Ariano Suassuna. Ele foi acometido de um grave
acidente vascular encefálico, mas continuou a escrever. Seu mais recente livro,
Colégio de freiras (São Paulo:
Iluminuras, 2019), não é um primor de literatura. Nele, há apenas uma ligeira
menção ao manguezal: “... o matinho ficava no mangue atrás do cinema.”. Com
Carrero, não há dúvida: mangue é mesmo o manguezal que conhecemos, o
ecossistema vegetal estuarino tropical. Esse matinho a que ele se refere era o
local procurado por aqueles que estavam apertados e procuravam um banheiro. A
associação de mangue com esgoto mais uma vez aparece na literatura
pernambucana.
Recife,
mais conhecida cidade-mangue
Também o premiado escritor Milton Hatoum volta ao mundo literário com Pontos de Fuga, segundo volume da trilogia O
lugar mais sombrio. (São Paulo: Companhia das Letras,
2019). Ele também identifica um manguezal, pelo menos de fora, sem precisar
conhecer sua ecologia. Esse ecossistema aparece três vezes em seu novo livro.
Martin, o personagem principal, “vai catar caranguejos nos mangues da Baixada
Santista...”. A segunda menção já não se refere ao ecossistema e sim a uma
comunidade: “aprendeu jogar capoeira com o pessoal do mangue da rua Rodésia”.
Idem com a terceira: “É filho do mestre Bira, da comunidade do Mangue.”
Várias vezes mais o manguezal vai figurar na literatura. Não
se espere que ele seja cenário de um novo romance, mas sempre uma referência
superficial e passageira.
Limpeza
comunitária numa área de mangue em Santos
Por fim, Heloisa
Seixas em seu livro de contos A noite
dos olhos (São Paulo: Companhia das Letras, 2019) revela um conhecimento do
manguezal, mesmo que superficialmente. Ela escreve: “Sua mãe não cansara de
explicar, pois nascera à beira de um mangue e entendia de crustáceos, mas ela
não guardava as explicações. Ouvia o começo, sempre. Tanto os siris quanto os
caranguejos são comuns no mangue, nos estuários dos rios. Mas há muitas
diferenças: primeiro, o formato da carapaça.” A pessoa a quem se refere talvez
seja como a escritora, ouvindo o começo da explicação, mas não guardando muito
as informações.
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