LITERATURA BRASILEIRA DE FICÇÃO EM 2019 (II)
Folha da Manhã, Campos dos
Goytacazes, 31 de janeiro de 2020
Literatura brasileira de ficção
em 2019 (II)
Arthur Soffiati
Em terceiro lugar, fico entre “A
morte e o meteoro”, de Joca Reiners Terron (São Paulo: Todavia), e “Marrom e
amarelo”, de Paulo Scott (Rio de Janeiro: Alfaguara). Não importa a ordem. O
livro anterior de Terron, “Noite dentro da noite” (São Paulo: Companhia das
Letras, 2017), é, no meu entendimento de leitor empenhado, um dos melhores
livros dessas duas décadas do 3° milênio. Sua trama é altamente elaborada. Sua
forma de escrever é extremamente complexa. “A morte e o meteoro” não alcança o
mesmo nível, mas consolida o nome de Terron como um dos maiores ficcionistas
brasileiros da atualidade.
Um sertanista descobre uma nação
indígena na Amazônia, mas acaba tendo um comportamento indigno com uma índia.
Mais tarde, ele amputará o dedão do pé, pois nele estava seu passado, do qual
ele queria se livrar. A Amazônia é destruída. O sertanista morre em condições
suspeitas. Um indigenista colega seu se incumbe de seu plano: o exílio de toda
a nação indígena para o México. Trata-se do primeiro caso de exílio coletivo.
Mas lá todos os integrantes da nação praticam suicídio coletivo. Estamos diante
de mais uma distopia. Um futuro sombrio em que a casa das nações indígenas da
Amazônia (a floresta) é demolida e em que os moradores são removidos para outro
país (México). A Amazônia é “um lugar mais quente que o inferno e onde as
chuvas equatoriais já não caíam tão caudalosas quanto no passado.” Os kaajapukugi
era uma “tribo isolada que recusava contato com o homem branco” e que “viviam
numa paisagem desertificada sem estarem preparados”.
Paulo Scott se propõe a discutir a
questão das costas de uma forma que, a princípio, parece um artifício literário
fácil: a intercalação de um capítulo sobre a vida de uma família negra em Porto
Alegre e um capítulo sobre uma comissão governamental em Brasília para discutir
e definir as cotas raciais. Os membros da comissão representariam as várias
vozes sobre a questão. Assim, a discussão teria matizes variados. Federico, um
dos filhos do casal negro de Porto Alegre, é convidado para a comissão,
presidida por uma negra que exerce função no governo federal. Parece um recurso
fácil.
Mas, após essa intercalação inicial,
o livro toma outro rumo. Federico se aproxima de uma procuradora da república,
embora não tenha conseguido resolver um amor antigo da sua juventude. A
sobrinha de Federico se envolve com a polícia e pode ser acusada de terrorismo
por porte de arma. Federico deixa a comissão e retorna a sua terra para ajudar
o irmão e a sobrinha. Lá, descobre que o delegado que preside o caso é seu
desafeto antigo. Federico revê sua antiga namorada. Ele está dividido entre o
presente e o passado.
O romance termina em aberto. Os dois
irmãos, filhos de um perito da polícia altamente respeitado e agora aposentado,
partem em busca do dono da arma, usada no passado para matar um homem em
legítima defesa. Não se sabe o que acontecerá aos três. Não se sabe se a
sobrinha será condenada e presa. Não se sabe se o homem procurado será
encontrado. Não se sabe se Federico resolverá sua indefinição sentimental.
Chico Buarque retorna à literatura
de ficção com “Essa gente” (São Paulo: Companhia das Letras”). Um escritor vive
das glórias do passado. Ele escreveu um livro que se tornou best-seller. Mas
agora está em crise de criatividade. Separado, ele tem um filho ainda pequeno.
A relação entre ambos é meio fria. Sua ex-mulher se relaciona bem com ele, mas
mantendo distância. O escritor está empenhado em novo livro. Para tanto, faz
pesquisa. Entrevistando um salva-vidas negro, ele se encanta com a mulher dele,
uma holandesa que vive numa favela com o marido. O livro avança por meio de
notas, apontamentos, cartas. Chico Buarque concebe frases ao modo de Portugal:
“está a fazer” não “está fazendo”.
Concordei com a observação feita por
Alcir Pécora sobre seu livro anterior. Os personagens se movimentam num
contexto histórico, mas este não está devidamente amarrado e consolidado. Mesmo
não sendo um romance histórico, o substrato histórico de “Essa gente” é frouxo.
De todos os romances lançados em
2019, “Todos os santos” (Rio de Janeiro: Alfaguara), de Adriana Lisboa, é o
mais cosmopolita. No seio de uma família de classe média baixa, um irmão morre
ainda criança. Essa morte acompanhará pais, irmãos, parentes e amigos para o
resto da vida. Pai e mãe se separam, ficando um no Rio de Janeiro e indo a
outra para Pernambuco com a filha. O pai entra num novo relacionamento. A filha
se aproxima dos novos membros da família do pai. Ela se apaixona por um deles.
Ambos estudam biologia e encontram trabalho na Nova Zelândia.
Adriana Lisboa morou neste país, o
que a ajuda a construir um contexto convincente. Mas como o casal estuda os
hábitos de uma ave migratória, é preciso estudar ornitologia para não cometer
gafes. A diferença entre ave e pássaro chega a ser didática no livro. As
considerações de natureza ontológica também: “No dia em que conseguirmos tratar
os bichos com dignidade, tenho a impressão de que já teremos resolvido quase
todas as nossas contradições.” Ou “O bicho, esse outro tão irmão e tão outro.”
E, já que estamos falando de aves,
Adriana Lisboa não conseguiu, neste livro, ir adiante de “Azul corvo”, livro
anterior seu. Ela escreve bem sem conseguir voos altos. Mas ela não laçou
apenas um romance em 2019, como também compareceu com “Deriva” (Belo Horizonte:
Relicário), livro de poesia.
Tenho lido, ultimamente, muita
poesia produzida nas proximidades da Semana de Arte Moderna, de 1922. O parnasianismo
e o simbolismo estertoravam naquela época, mas resistiam. Muitos autores
continuavam a escrever poemas com métrica e rimas. Lendo essa profusão de
versos, acaba-se por perder o interesse. A busca de uma perfeição literária que
se aprende em manuais e que se distancia da vida torna os autores que
continuaram com métrica e rima, com raras exceções, extremamente maçantes.
O modernismo abriu a caixa de
pandora. De lá, saíram todas as qualidades e todos os defeitos. Creio que
vivemos a fase dos defeitos, embora existam alguns poetas bons. No geral, a
poesia foi invadida pelo egocentrismo. Adriana Lisboa sai dessa prisão de vez
em quando, mas continua cultuando o “eu” na maior parte do tempo.
Em “Deriva”, um bom exemplo do eu
poético discreto: “O tudo que se tem não/representa/tudo//do que se apresenta/o
nada que se tem/é puro conteúdo/a pura
consideração/o todo do nada: a melodia/o ia/o ão.” Exemplo do eu
ostensivo: “não sei ao certo/mas desconfio/que essa neblina/no espelho/seja
eu.”
Milton Hatoum está empenhado em
narrar a formação sentimental, cultural e política de um jovem, talvez alterego
do autor. O projeto é expor essa trajetória numa trilogia, intitulada “O lugar
mais sombrio”, da qual já foram lançados dois livros: “A noite da espera” (São
Paulo: Companhia das Letras, 2017) e “Pontos de fuga” (São Paulo: Companhia das
Letras, 2019). O autor, já consagrado por obras anteriores, vale-se de técnica
narrativa polifônica. Muitas vozes são ouvidas. Totalmente vivida durante o
regime militar brasileiro, o livro também olha para a onda ditatorial que
varreu a América do Sul nas décadas de 1960 e 1970. Para tornar a narrativa
mais complexa, o autor salta do Brasil para a França, do início da ditadura
militar para seus estertores.
Sobre “Pontos de fuga”, o crítico
literário Alcir Pécora apontou três problemas: o tratamento convencional do
contexto histórico, que aparece como pano de fundo, sem interpretação original;
a questão do sumiço da mãe de Martim, personagem principal da trilogia, que não
merece uma abordagem consistente; e um tratamento muito literário à memória.
Da minha parte, apenas como leitor
interessado, recorro a uma metáfora musical, já que tratamos de pontos de fuga
ou apenas fuga. A música renascentista se contrapõe ao canto gregoriano.
Enquanto este é monofônico, a música renascentista é polifônica. Enquanto as
vozes, no gregoriano, cantam em uníssono, no renascimento, os corais cantam em
vozes múltiplas, sem consonância necessária. Essa polifonia chegou à dissolução
da música com Gesualdi. Cada voz caminhou para seu lado até que Monteverdi
consolidou a homofonia e a harmonia. Os dois romances de Hatoum são polifônicos
demais, o segundo mais que o primeiro. Um leitor comum, embora empenhado como
eu, acaba se perdendo na leitura.
Julián Fuks retornou com “A
ocupação” (São Paulo: Companhia das Letras). O livro se situa entre o diário e
o romance, narrado pelo próprio Julián com o nome de Sebastián. De fato, Fuks
participou de um grupo de estudos de prédios urbanos ocupados por pobres. As
pessoas que desfilam com seus dramas pessoais são reais. No meio, Fuks insere o
caso de seu pai e da sua mulher, além de publicar uma carta que ele escreveu
para o escritor moçambicano Mia Couto e outra que este lhe escreveu. É tudo
real, mas a maneira de escrever assume a forma de romance. Fuks parece ter sido
feliz na escolha de escrever um diário romanceado.
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