LITERATURA BRASILEIRA DE FICÇÃO EM 2019 (III)


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 15 de fevereiro de 2020
Literatura brasileira de ficção em 2019 (III)
Arthur Soffiati
            “Mulheres empilhadas”, de Patrícia Melo (São Paulo: Leya), não mereceu muitos comentários da crítica especializada e da imprensa, mas se trata de um dos melhores romances publicados em 2019. Uma advogada é incumbida por sua empresa a acompanhar os julgamentos de feminicídio no Acre, estado brasileiro em que esse crime apresenta alta incidência. A escritora se torna amiga de uma promotora de justiça, tem contato com povos indígenas, faz experiência com alucinógenos e se espanta com a banalização dos crimes contra as mulheres. Ela mesma perdeu a mãe, que foi assassinada pelo pai, e teve um romance com um homem que a agrediu.
            Pode parecer uma trama simples, mas Patrícia se vale dos alucinógenos indígenas para enveredar no onírico, escrevendo capítulos inteiros sobre a concepção mágica dos povos nativos. De forma tal que, em vários momentos, sua escrita se aproxima da atmosfera de “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Não apenas. A autora declara que “Mulheres empilhadas” exigiu dela muita pesquisa e contribuição de estudiosos, algo que ela não necessitou fazer em seus romances anteriores.
            Devo destacar ainda dois aspectos. Primeiro, a autora vem se afastando da estética da violência, que teve em Ruben Fonseca seu maior expoente, para se tornar mais realista quanto ao mundo violento que se vive na atualidade. “Mulheres empilhadas” é um romance forte, com palavras diretas e nada rebuscadas: “- Eu acreditava que pornografia era aquela coisa de cu e xoxota para homem broxa, mas você não tem ideia do que a Denise me mandou ler. Já ouviu falar numas merdas chamadas snuff? Cacete! Sabe o que é o cara matar a mulher, arrancar o útero dela e ejacular. O cara ejacula segurando nosso útero!”. O livro é um libelo contra a pornografia, associando-a ao feminicídio.
            O segundo aspecto é que a autora assume nitidamente postura feminista, mas sem incorrer na intolerância do feminismo intransigente, do tipo em que a mulher está atenta à fala e às atitudes do homem para entender cada palavra e cada gesto como manifestação de machismo. O feminismo do livro é amoroso e compreensivo, incluindo a participação do homem.
            Destaco ainda o desvendamento da história do Acre feito pela autora para explicar o comportamento autoritário e conformista das pessoas, bem como o processo de aculturação dos povos indígenas, que os leva a adotar postura machista do tipo ocidental. Enfim, Patrícia Melo desmantela mitos cultivados por intelectuais. 

            Raimundo Carrero também envereda pelo tema do machismo em “Colégio de freiras” (São Paulo: Iluminuras), mas de forma sofrível. Carrero estrou na literatura como uma grande promessa e com as bênçãos de Ariano Suassuna. “Bernarda Soledade” e “Sombra severa” o consagraram como ficcionista, sendo traduzidos na França e na Romênia. Não creio que “Colégio de freiras” tenha a mesma sorte. O romance retrata o contexto machista do Nordeste, em que um pai exclui a filha violentamente da família por se mostrar muito independente. Carrero tenta novamente escrever de uma forma moderna, como em “Ao redor do escorpião... uma tarântula?”, porém não consegue mais. O autor parece datado. Usa chavões e constrói uma trama pouco convincente.

            “Os dias da crise” (São Paulo; Companhia das Letras), de Jerônimo Teixeira, está ambientado, em grande parte, nos movimentos populares de 2013. Um homem separado trabalha numa firma extremamente competitiva, tendo, ao mesmo tempo, postura intelectual que o leva a ver seu trabalho, seus colegas e o mundo com outros olhos. Trata-se de uma boa contradição ou de uma dicotomia favorável à criação de um romance. Esse homem tem uma filha universitária e um irmão professor. Ele se envolve com Helena, professora universitária, bela e contestadora. 

            O homem se contenta com uma vida sexual comedida, mas Helena é exigente e gosta da força no amor. Força que se limita com a violência. Apanhar para se excitar é, para ela, fundamental. Mas o limite entre o tapa excitante e a violência é sutil. O homem maduro, sua filha e Helena acabam participando do movimento de 2013, em que ele se estranha ao assumir a condição de destruidor. Na verdade, o autor não conseguiu transmitir autenticidade a seus personagens.

            O octogenário Ignácio de Loyola Brandão retorna com a distopia “Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela” (São Paul: Global). O romance data de 2018, mas só foi lançado em 2019. O autor tenta repetir a criatividade e o ritmo vertiginoso de “Zero” e “Não verás país nenhum”, mas não consegue. “Não verá país nenhum” é, talvez, a maior distopia escrita por um autor brasileiro, juntamente com “O sorriso do lagarto”, de João Ubaldo Ribeiro. O segredo de uma utopia ou de uma distopia consiste em se partir do que é conhecido do leitor para criar um mundo distante no espaço ou no tempo com elementos conhecidos e, ao mesmo tempo, estranhos.

            Em “Não verás país nenhum”, reconhece-se o Brasil, mas estranha-se a transformação que nele se operou. Em “Desta terra...”, o futuro está muito próximo de presente, com realidades que até já existem. O autor não se dedicou muito à pesquisa. Entende-se que, aos 80 anos, um romance que exija pesquisa torne-se mais difícil para o autor. Uma amostra tomada a esmo  entre muitas: “o Ministério da Saúde ter feito campanha, exterminando todos os macacos do Brasil; éramos a nação com o maior número de primatas do mundo, com 133 espécies. Acabaram com todos, restando apenas macaquinhos de pelúcia para crianças brincarem ou serem colocados no espelhinho do para-brisa dianteiro.”

            O leitor reconhece a situação retratada. Ela se refere aos recentes surtos de febre amarela. Ela pode estar sendo exagerada pela decisão governamental de extinguir todos os indivíduos de macacos das diversas espécies, algo que não aconteceu. Por outro lado, torna-se anedótico existirem somente macaquinhos de pelúcia pendurados no para-brisa de automóveis, que não deveriam mais existir no futuro distópico. Enfim, o livro revela mais o saudosismo do autor que o medo do futuro.

João Anzanello Carrascoza volta, em 2019, com “Elegia do irmão” (Rio de Janeiro: Alfaguara). Como sempre, o intimismo e a delicadeza, duas características da sua literatura, marcam seu novo romance. Ele gira em torno da presença e da ausência de Mara, a personagem central do livro. Ela sofre de uma doença mortal e sucumbe. O narrador, seu irmão, acompanha os dias de Mara antes da doença, durante e depois dela. O autor narra a presença e a ausência da irmã com ternura, como se ela existisse mesmo.

Uma pessoa ocupa sempre um lugar ímpar. Quando morre, deixa esse lugar vazio e reservado, como se fosse voltar. É o que sustenta Carrascoza em capítulos curtos, como anotações de um diário e mesmo poesia: “eu retiro todo o excesso de episódios, mesmo os mais belos, para preservar apenas o cerne da nossa história, eu retiro as nossas tardes felizes diante da televisão, as nossas desavenças, os nosso pés rabiscando o quintal de terra de casa, eu retiro os retratos que nos flagraram ao longo da vida em ocasiões festivas, os brindes de champanhe, os cigarros que fumamos, as confidências mútuas, eu retiro sem desespero, quase com a calma que ela mantinha sob seu mando, eu retiro do mundo tudo o que não é ela, e, assim, como quem faz o oceano, dobrável, se recolher e se concentrar todo numa única gota, duas em verdade, eu chego aos seus olhos, resumo de sua existência inteira, eu chego aos seus olhos – esse par de águas-marinhas que reluz aqui, sobre a palma da minha dor.”

Daniel Augusto nos presenteia com “Nem o sol nem a morte” (São Paulo: Nós), um romance que transita entre o real e o imaginário fantástico. Ou o real é, em si, uma ilusão? Ao contrário, a ilusão pode ser real? O início do romance já coloca o leitor num terreno fantástico: um escritor pouco imaginativo, buscando um enredo para escrever um romance, recebe o convite de um amigo e colega, há muito desparecido, para visitá-lo em sua cabana num ermo gelado de um país distante. Ali, narra sua vida atribulada, meio real meio psicótica. Está escrito um dos romances mais curiosos e originais da atualidade brasileira.

No entanto, não mereceu a devida atenção da crítica. Luiz Alfredo Garcia-Roza finalmente aposenta o talvez mais famoso policial do Brasil, o delegado Espinosa, em “A última mulher” (São Paulo: Companhia das Letras). Tanto autor quanto personagem estão cansados. Depois desse romance tépido, melancólico, frouxo e fatigado, melhor mesmo parar. Por fim, “Posso pedir perdão, só não posso deixar de pecar” (São Paulo: Leya), primeiro romance de Fernanda Young, publicado postumamente para homenagear a autora. Com toda a importância que ela representou para a televisão, minha opinião de leitor empenhado é que ela não seria uma grande ficcionista. Desde seu primeiro livro, “Vergonha dos pés”, tive essa impressão, embora ela tivesse, sem perceber, o gancho para um romance de qualidade. Bom, ela seguiu sua carreira de produtora e se saiu muito bem. Essa era a sua praia. Uma crise asmática a matou repentinamente em 2019.

 

Faltam os livros de contos e de crônicas, além da literatura estrangeira.  


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