LITERATURA BRASILEIRA DE FICÇÃO EM 2019 (I)


Folha da Manhã, Campos dos Goytacazes, 24 de janeiro de 2020

Literatura brasileira de ficção em 2019 (I)

Arthur Soffiati

            Talvez exista a vaga noção, entre não especialistas, de que a literatura brasileira de ficção só passou a ser ambientada nos meios urbanos depois de João Guimarães Rosa, autor que encerrou, não totalmente, o ciclo da literatura regional. José de Alencar, Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Marques Rebelo ambientaram seus contos e romances no meio urbano. No tempo de José de Alencar e Machado de Assis, o urbano e o rural estavam mais próximos. Daí poder-se sair com mais facilidade da cidade para as chácaras adjacentes, em áreas hoje intensamente urbanizadas. Boa parte da literatura paulista pré e pós-Semana de Arte Moderna enfoca a cidade.

            A literatura regionalista é, em parte, resultante do Modernismo. Antes, poetas e ficcionistas urbanos, como Catullo da Paixão Cearense, Paulo Setubal, Hugo de Carvalho Ramos, Monteiro Lobato, Godofredo Rangel e alguns mais voltaram-se para o meio rural, idealizando-o ou folclorizando-o. O modernismo estimulou uma visão mais realista do rural, seja como forma de encontrar o cerne da alma brasileira, seja como forma de denúncia social sobre o Brasil desconhecido pela cidade. O regionalismo de Graciliano Ramos e de Guimarães Rosa é bem diferente do antigo regionalismo.

            Hoje, o Brasil se urbanizou com intensidade e, mais do que isso, mergulhou progressivamente na globalização promovida pela Europa capitalista a partir do século XV. É natural que a poesia e a ficção retratem esse novo contexto. A literatura brasileira não se contenta mais com o meio urbano, senão que navega por outros países. O regionalismo hoje está na memória, como nos livros de Aldyr Garcia Schlee, e como tema de Ronaldo Correia de Brito, que transita da cidade para um sertão nordestino descaracterizado pela urbanização e pela globalização. Um sertão em que se usa celular, em que o cavalo foi substituído pela motocicleta e do qual homens antigamente viris migraram para a cidade e trabalham em fábricas de lingeries.

            Em 2019, prevaleceu a literatura ambientada em meio urbano do Brasil e de outros países, confirmando que o processo de globalização se aprofunda cada vez mais. Temas como diversidade e afirmação de gêneros, ascensão da raça negra (embora não me agrade o conceito), desigualdades sociais, questões políticas etc. A lista de melhores livros do ano apresentada pelo jornal “O Globo” me desnorteou por parecer mais orientada por temas emergentes e não por qualidade literária. Os que reputei mais significativos são “O verão tardio”, de Luiz Ruffato (São Paulo: Companhia das Letras) e “Carta à rainha louca”, de Maria Valéria Rezende (Rio de Janeiro: Alfaguara). Não entrarei nessa de considerar o livro bom porque foi escrito por uma mulher ou negro ou pobre.

            Ruffato não estava conseguindo acertar a mão ultimamente. Sua força ficcional arrefeceu. Mas, em 2019, ele volta com vigor. “O verão tardio” narra o retorno de Oséias a Cataguazes, sua cidade natal, muitos anos depois de a deixar em direção a São Paulo. Sabe-se que Oséias é ou foi casado e que tem parentes em Cataguazes. Aos olhos desses, por que ele voltou depois de tantos anos? O que desejará? Saudade? Interesses materiais? Oséias envelheceu e parece doente. De uma doença mortal. Câncer? Durante uma semana, ele visita parentes e encontra casualmente pessoas do seu passado.

            Aliás, passado e presente se encontram numa narrativa ágil e densa. Raros são os parágrafos. Lendo “O verão tardio”, lembrei-me do livro “O significado da evolução” do paleontólogo norte-americano George Gaylord Simpson. Para explicar a biodiversidade, ele se vale de um símile.  Imaginemos um tambor dentro do qual jogamos pedras grandes. Entre elas, sobram espaços que podem ser ocupados por pedras pequenas. Restam espaços menores que podem ser ocupados por areia. Finalmente, podemos encher o tambor de água. A biodiversidade ocupa grandes, médios, pequenos e invisíveis espaços. Numa escrita linear, geralmente existe um narrador onisciente ou um narrador principal que passa a palavra aos personagens. Suas falas são precedidas de travessão. Um fala, depois outro. A narrativa volta para o narrador onisciente. Conto e romance chegam ao fim, geralmente com uma grande história que entretenha o leitor e não crie dificuldade de leitura.

            Ruffato narra a trajetória de um homem velho e doente dentro de uma cidade degradada. Essa trajetória é errática. Cataguazes não é mais a cidade da sua infância. Ela mudou para pior. Oséias nota tudo o que está a sua volta nos mínimos detalhes sem que haja uma grande história. No decorrer de uma semana, ele entra e sai de Cataguazes sem qualquer explicação. Ele preenche seu entorno com pedras grandes, pedras pequenas, areia e água.

            Em “Carta à rainha louca”, Maria Valéria Rezende retorna com vigor. Ela é freira agostiniana com longa experiência em educação popular e relacionamento com camadas pobres da realidade. No seu novo livro, ela retorna ao fim do século XVIII para narrar indiretamente a triste história de Isabel, acompanhante de Blandina, uma senhora rica e de família ilustre no Brasil. A vida de Isabel é muito aventurosa desde a infância com o pai. Ela passa por muitos reveses e acaba prisioneira num convento em Olinda. Julgando que a rainha de Portugal, Maria I, pudesse ajudá-la, Isabel lhe escreve uma longa carta ao longo de vários anos narrando suas desventuras. Mal sabia ela que a rainha era tida como louca e que sua carta jamais lhe chegaria às mãos. Caso chegasse, nada mudaria.

            Sem papas na língua, Maria Valéria Rezende expõe, pela pena de Isabel, os desmandos que ocorriam no Brasil colônia, desmandos cometidos pelos poderosos senhores. Desmandos de poder, de abuso contra os pobres e contra as mulheres. Ambição por terras, muita ambição. Escreve Isabel: “Custa-me compreender de que lhes servirá, depois de mortos, possuírem ainda léguas e léguas contínuas de terra, quando então lhes bastarão sete palmos de cova no chão.” Sobre a condição da mulher rica ou pobre, Isabel é enfática: “não podereis compreender o quanto somos nós, as mulheres desta terra, usadas e abusadas por todos aqueles que aqui detêm o poder e nunca, por nenhuma razão, abrem mão dele, nem sequer por amor de nosso Senhor Jesus Cristo.” Ou “Se inúteis são Vossas leis para quem nenhum poder, riqueza, prestígio ou padrinho tem nestas terras nascidas para nada mais senão servir à mesa e à cama dos varões, em suas alcovas e fogões, no fundo das tabernas se aí as quiserem ou, na sua melhor sorte, como penhor de alguma aliança entre famílias poderosas.”

            A carta de Isabel está repleta de denúncias sobre a ambição, o abuso de poder e a concupiscência dos senhores. Mas esses trechos escabrosos são riscados para que a rainha não os leia, permitindo, porém, que o leitor os leia.  

            Como são vários os livros a serem comentados, continuamos na próxima semana.

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