DUAS BREVES CANÇÕES AVULSAS
Duas
breves canções avulsas
Arthur
Soffiati
Na
pequena cidade alemã de Rüdesheim, às margens do rio Reno, foi grande minha
alegria ao saber que o mirante que eu visitava situa-se num bosque frequentado
por Johannes Brahms nos seus passeios campestres. Uma placa com sua silhueta de
perfil, a barriga, a longa barba e o charuto, continha um pequeno texto em
alemão prestando a informação. Nesse parque, encontra-se um monumento
patriótico terminado em 1883, celebrando a vitória da Alemanha sobre a França em
1871 numa guerra que promoveu a criação do Estado alemão.
Ele foi repetidas vezes convidado pela família Beckerath a passar temporadas em
Rüdesheim, entre os anos de 1874 e 1895. Em 1883, ele compôs a sua terceira
sinfonia em Wiesbaden, cidade vizinha de Rüdesheim. Em homenagem a Brahms, anualmente,
celebra-se, em Rüdesheim, um festival em memória do
compositor.
Mais
tarde, já noite, entramos em Drosselgasse, ainda em Rüdesheim, e fomos jantar.
Drosselgasse é um beco estreito e bastante conhecido por seus prédios antigos e
restaurantes. Além de tudo, é encantador. O restaurante em que entramos
oferecia música ao vivo, como os demais. No meio do nosso jantar, uma cantora
com um acompanhante ao teclado iniciou sua apresentação. O clima era
intensamente alemão. Mas ela não começou com música alemã, e sim com música de
vários países cantadas em alemão, inclusive “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim.
Quando
ela principiou a entoar música alemã, os poucos frequentadores do restaurante
começaram a se deslocar para perto da cantora e acompanhá-la. Inclusive uma
jovem garçonete articulava as letras sem que pudéssemos ouvi-la. O que notei
foi a alegria dela. A música realçava sua beleza. Deviam ser letras
contagiantes.
Mais
uma vez, a figura de Brahms me veio à mente. Comecei a cantarolar baixinho a
“canção de mesa” (Tafellietd), opus 93b (https://www.youtube.com/watch?v=W2J__e20voM). Trata-se de uma composição breve, de
apenas 3,45 minutos, para coral misto e piano. O coro masculino responde ao
feminino, para concluir a singela melodia em conjunto. Com letra de um grande
poeta alemão, Brahms a compôs em 1885 para o cinquentenário da sociedade coral
da comunidade em Krefeld. Assim era Brahms. Ele se comovia com as coisas
simples do mundo tanto quanto era capaz de compor uma complexa sinfonia para as
salas de concerto, exigindo muito das orquestras em sua execução.
Tafellied
é uma canção delicada. Ela expressa a alegria das pessoas simples e os pequenos
prazeres, como a alegria descontraída de beber. É um trabalho leve, mas que
remete à Alemanha profunda, aquela que emergia no restaurante. Apercebi-me de
como é prazeroso cantar uma canção simples que, em Brahms, sempre alcança as
profundezas do coração.
Se
existe um op. 93b, é de se supor que exista um op. 93a. E existe. São as “Seis
canções e romances” (“Sechs Lieder und Romanzen”), com duração de 11,45m. Do a para o b, o salto é grande. As “Seis canções e romances” expressam o
Brahms cerebral, grande conhecedor da história da música e da arte da
composição. As seis canções para coro feminino à capela valem-se de recursos
elaborados. A primeira delas remonta às origens do barraco, usando o ritmo
agalopado das composições de Monteverdi.
Já
o op. 93b é uma canção campestre e simplória, sem requintes de composição,
propositalmente não utilizados por Brahms. É uma canção de camponeses, de
pessoas comuns, que celebram a alegria da vida sem refinamentos. Mais uma vez,
é a Alemanha profunda que aparece ali, a Alemanha que senti em Rüdesheim.
Embora alegre, as lágrimas me vieram aos olhos. Não por tristeza, mas por emoção.
A
música pura ou absoluta proposta por Wagner e atribuída a um compositor como
Mozart, por exemplo, só existe na música de vanguarda. Wagner e Mozart não a
praticaram, pois, a ópera, gênero que frequentaram com assiduidade, é uma
história musicada, assim como a dança. Se a história é contada pelo canto na
ópera, na dança ela é contada pelos braços, mãos, pernas, pés, corpo e
movimentos. O poema sinfônico pretende ser uma composição que conta uma
história com sons instrumentais. Já na música de vanguarda, o experimentalismo
normalmente presente, não comove.
Assim,
entre os compositores que não abandonaram a melodia, mas não compuseram óperas,
balés e poemas sinfônicos, como o caso de Brahms, poder-se-ia falar em música
absoluta ou pura? Entendo que não. Se Brahms não conta histórias com vozes,
movimentos e instrumentos, expressa emoções diversas.
Há
interpretações variadas para a “canção de mesa”. Gosto mais das que exprimem o
estilo de Brahms: o piano introduzindo o coro com vigor e com certa rapidez,
com o coro cantando com firmeza. Há algumas em que o pianista a inicia com as
mãos moles, com o acompanhamento anêmico do coro. Um regente precisa conhecer o
espírito do compositor que interpreta.
Naquela
mesma noite, em Rüdesheim, evoquei também a “Cantata de casamento” (kleine
hochzeitskantate), opus WoO 16, composta por Brahms para o casamento de Sigmund
e Emile Exner, amigos do poeta Gottfried Keller (https://www.youtube.com/watch?v=EFJR73Lwodo). O casamento ocorreu em 1874.
Brahms compôs a peça com letra do próprio Keller, que era seu amigo. Mas ela só
foi impressa postumamente, em 1927.
Entre
um grande romance e outro, Thomas Mann escrevia pequenos livros que eram
verdadeiras joias. Brahms também. A “Cantata de casamento” é uma breve
composição, de apenas de 1,20 minuto, para quarteto vocal e piano. Malcolm Mac Donald, em sua biografia de
Brahms (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993), entende ser a “canção de mesa” mais
esmerada que a “cantata de casamento”. É outro meu entendimento. A “canção de
mesa” parece propositalmente composta de forma simples para expressar a emoção
da alegria de modo também simples.
Já
a “cantata de casamento” é uma composição circunstancial com as quatro vozes se
contrastando em contraponto. Mais uma vez, retornamos à questão da música pura.
Esta breve composição de Brahms é elaborada e transparece a claridade de um
jardim à luz do sol em luminosa manhã, no quintal de uma mansão. A emoção
transmitida por ela é a alegria, porém mais sofisticada do que a “canção de
mesa”. Esta exalta a alegria do campo e o prazer de pessoas simples que se
confraternizam com vinho.
A
“cantata de casamento” expressa o meio urbano e sofisticado. A alegria de
pessoas ricas e ilustres numa solenidade aristocrática. Embora breve, a canção
é fascinante. O piano apenas introduz e acompanha as vozes, sem qualquer
pretensão de virtuosismo. O virtuosismo brahmsiano não está no talento do
intérprete como em Liszt, por exemplo, mas no conjunto musical. Ultimamente,
existem pianistas e violistas se valendo dos concertos de Brahms para fazer
performance. Nada mais contrário à concepção de Brahms sobre a sua música e a
música em geral. Daí que, para interpretar as composições do grande alemão, o
intérprete, seja ele instrumentista ou regente – deve conhecer o espírito do
seu autor.
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