ÁGUA EM SÃO FRANCISCO DE ITABAPOANA
Campos
Magazine News, 14 de janeiro de 2020
Água
em São Francisco de Itabapoana
Arthur
Soffiati
Para concluir minha tese de
doutorado, entrevistei em Guaxindiba, no ano de 2000, Ezequiel Soares de Souza.
Conhecido como Isac, Ezequiel nasceu em 22 de março de 1922 e morava na praia
do Sossego, margem direita do canal Engenheiro Antonio Resende, desde 1972.
Nunca viveu da pesca, embora tenha possuído um barco pesqueiro. O máximo que
fez, relacionado à água, foi atravessar pessoas de uma para outra margem do rio
Guaxindiba e depois do canal Engenheiro Antonio Resende.
Ezequiel era pequeno
proprietário e produtor rural. Nos tempos áureos de Gargaú como entreposto
comercial, ele negociava milho, feijão, mandioca, galinha, ovos e farinha,
transportando as mercadorias em carro de boi. Antes da chegada do Departamento
Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) aos rios Paraíba do Sul, Guaxindiba e
Itabapoana, havia uma grande abundância de água no chamado sertão de São João
da Barra, sendo muito diversificada a fauna aquática. Farta era também a
cobertura vegetal nativa do Sertão de Cacimbas, antigo nome da zona rural de
São Francisco de Itabapoana, com matas fechadas e ricas em braúna, ipê, sobro,
peroba e outras madeiras nobres. Nas palavras de Isac, a lavoura e o pasto
acabaram com tudo. As usinas desmataram para obter lenha que alimentasse suas
fornalhas. Lenha e madeira desciam pelo canal de Cacimbas.
Canal de Cacimbas em 1939
Isac chegou a
possuir uma fábrica de mandioca com máquina a motor que acabou vendendo. Quando
o entrevistei, ele vivia sozinho e modestamente numa pequena casa junto ao
manguezal do complexo rio Guaxindiba-canal Engenheiro Antonio Resende. Isac me explicou:
“Só existia o Guaxindiba, que nascia no brejo do Espiador e tinha muita curva.
Ele fechava a barra na quadra que não tinha chuva. Era preciso abrir ele no
braço ou com a draga. No tempo de chuva, o peso da água rompia sozinho a barra.
Com a abertura do valão da draga, ele fica sempre aberto. Depois, abriram
também o valão do Espiador, que morre no valão da draga.” E completava
informando que, depois de aberto esse último, desapareceram muitos canais
naturais então existentes, todos eles sem pontes e sem manilhas; todos eles
navegáveis por canoas.
Abertura do
canal Engenheiro Antonio Resende pelo DNOS na década de 1970
Ele me revelou
que, em tempos de cheias excepcionais (que aconteciam com mais frequência no
passado), era possível sair de canoão de Guaxindiba e chegar à Casa Sincera, na
margem direita do rio Paraíba do Sul, para fazer compras. Durante muito tempo,
refleti sobre as palavras de Isac. Será que, nas grandes cheias, as águas do
Paraíba do Sul venciam o divisor de água entre ele e o Guaxindiba? Não era de
todo impossível, pois a altura desse divisor alcança 3 metros de altitude, mais
ou menos. Assim, as águas do Paraíba do Sul subiam pelos canais de Cacimbas,
Cataia e outros, alcançando a lagoa do Campelo e atingindo o Guaxindiba.
Outro caminho
possível entre Guaxindiba e a casa Sincera, que ainda existe muito deformada,
era seguir pelo valão de Mundeuzinho, passar para o canal de Cacimbas, chegar à
margem esquerda do Paraíba do Sul, cruzá-lo e alcançar a casa Sincera. Ela fica
na direção da foz do extinto canal Cacimbas, que foi aberto para navegação e
foi convertido posteriormente em canal de drenagem pelo DNOS.
O território de
São Francisco de Itabapoana é formado pela ponta norte da restinga de Paraíba
do Sul e por uma grande unidade de tabuleiros limitada pelo rio Itapemirim, já
no Espírito Santo. No sul, o limite é o rio Paraíba do Sul. O rio Itabapoana
corta esses tabuleiros mais ou menos ao meio. Os tabuleiros constituem uma
formação geológica com grande teor de argila e concreções ferruginosas. O
terreno dos tabuleiros não é plano, mas ondulado e sem grandes elevações. No
encontro com o mar, a erosão marinha forma paredões conhecidos por falésias.
São Francisco de Itabapoana conta com essas características e oferece material
para uma verdadeira aula.
Poucas pessoas
sabem que o antigo Sertão de São João da Barra, hoje município de São Francisco
de Itabapoana, era ou é drenado por vários córregos que desembocavam no mar o
ano todo ou em parte dele. Entre os rios Itabapoana e Paraíba do Sul, podemos
ainda identificar os seguintes cursos d’água: lagoas Salgada e Doce (na
verdade, córregos barrados pelo mar) córregos de Guriri, Tatagiba-Açu (também
conhecido na parte alta com o nome de Baixa do Arroz), Tagiba-Mirim, Buena,
Barrinha, Manguinhos e Guaxindiba. Daí até o Paraíba do Sul, existiam muitos
cursos d’água que foram barrados pela restinga a partir de 5 mil anos antes do
presente.
Território de
São Francisco de Itabapoana. Legenda: restinga (amarelo); tabuleiros (ocre);
cursos d’água: 1- rio Itabapoana, 2- lagoa Salgada, 3- lagoa Doce, 4- Guriri,
5- Tatagiba-Açu, 6- Tatagiba-Mirim, 7- Buena, 8- Barrinha; 9- sem nome, 10-
Manguinhos, 11- Guaxindiba, 12- canal Engenheiro Antônio Resende, 13 a 17-
córregos barrados naturalmente pela restinga
Nos terrenos de
restinga, entre o Paraíba do Sul e o Guaxindiba, os manguezais ainda
existentes, embora adulterados, situam-se nos estuários, enquanto na parte
arenosa cresce uma vegetação típica de restinga em zonas a começar no ponto
alcançado pelas ondas e marés. Nos tabuleiros, verdejava uma densa mata
estacional, ou seja, uma floresta que viceja na estação úmida e perde até 50%
das folhas na estação seca. Essa mata regulava o regime hídrico dos córregos,
garantindo perenidade de janeiro a dezembro, embora com oscilações. Com as
chuvas de verão, era normal o transbordamento dos córregos e a ultrapassagem
dos divisores de água.
O príncipe
alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, ao passar pelo Sertão de São João da Barra
em 1815, escreveu sobre a pujança dessas matas, mas só registrou os rios
Paraíba do Sul e Itabapoana. O botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, em
1818, reiterou as palavras do príncipe naturalista. Talvez a floresta ocultasse
esses córregos. Já o suíço Jacob Tschidi, em meados do século XIX, registrou a
derrubada da mata com queimadas.
Queimada
registrada por Jacob Tschudi em São Francisco de Itabapoana em meados do século
XIX
Lentamente, a
floresta foi sendo destruída e transformada em lenha e madeira que era escoada
pelo rio Itabapoana ou pelo canal de Cacimbas para o rio Paraíba do Sul e daí
para outros lugares. Assim, os córregos ficaram sem a proteção das matas. As
margens foram erodidas e os leitos foram assoreados. Todos eles foram barrados
em vários pontos por proprietários marginais que desejavam reservar água para a
sua propriedade a fim de atender a agricultura e a pecuária. A mineração de
terras raras pelo governo federal chegou a suprimir estuários, o que se pode
constatar nos córregos de Tatagiba-Açu, Tatagiba-Mirim e Barrinha. As estradas
de terra e asfaltadas também deram uma contribuição notável para alterar o
ambiente original.
A fim de
beneficiar a agropecuária e regularizar as águas pluviais, o Departamento
Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) vedou os canais da Cataia e de Cacimbas
com comportas de mão única. Ligou o Paraíba do Sul à lagoa do Campelo abrindo o
canal do Vigário. Ligou a lagoa do Campelo ao rio Guaxindiba pelo canal
Engenheiro Antonio Resende, que aproveitou a foz do pequenino rio e drenou o
brejo do Espiador rasgando o canal de Guaxindiba. Este passou a ter dos cursos:
o original, sinuoso e quase morto, e um retilinizado e ativo, com desembocadura
no canal Engenheiro Antônio Resende.
Canal de
Guaxindiba aberto pelo DNOS sobre o rio Guaxindiba. Observar na margem direita
os antigos meandros do rio original
A RJ-196 e a
RJ-224 cortam o município longitudinalmente e barram os riachos. Elas se
encontram no norte do município e quase formam um círculo. Em poucos córregos,
a água pode circular por meio de bueiros, mesmo assim subdimensionados.
Em 2007, 2008 e
2009, pude acompanhar o efeito das enchentes em São Francisco de Itabapoana.
Fotografei somente a enchente de 2007, mas consegui com Simone Pedrosa,
moradora em Manguinhos, fotos relativas às de 2008/2009. Choveu muito em 2007.
O mutilado rio Guaxindiba engrossou e passou sobre a RJ-196, em busca do mar. O
bueiro sobre a rodovia mostrou-se insuficiente para tanta água. Mas não houve
rompimento da estrada, como aconteceu no trecho dela que cruza Quissamã.
RJ-196
ultrapassada por enchente do rio Guaxindiba em 2007
A estrada
municipal sobre o córrego de Manguinhos, na beira da praia, foi arrastada em
2007. No ano seguinte, aconteceu o mesmo, deixando os bueiros à mostra. Nos
terrenos planos dos tabuleiros, a água formou enormes alagados, ligando os
córregos.
Transbordamento
do córrego de Manguinhos em dezembro de 2008/janeiro de 2009. Foto Simone
Pedrosa
Transbordamento
do córrego de Manguinhos em 2007
Nos terrenos
ondulados, a água busca os pontos mais baixos e flui para o mar. No córrego de
Buena, a unidade das Indústrias Nucleares Brasileiras reforçou a comunicação
com o mar e barrou a água das chuvas. No barrado córrego de Tatagiba-Açu, os
moradores do local abriram uma vala até a praia. A água jorrou com força por
uma manilha sob a estrada. A montante, o córrego transbordou e alagou uma
estrada municipal de terra.
Estrada
municipal invadida pelo transbordamento do córrego de Tatagiba-Açu em 2007
Vazão
extraordinária do córrego de Tatagiba-Açu por manilha sob RJ-196 em 2007
Sangria do córrego
de Tatagiba-Açu para escoamento de água para o mar em 2007
No córrego Guriri, não houve maiores alterações, salvo o alagamento de um
trecho da RJ-196 por excesso de água. A força hídrica abriu a foz, permitindo,
inclusive, a entrada de uma canoa. Sua foz estava barrada havia muito tempo.
Abertura da foz do córrego de Guriri em 2007
No pequenino córrego que se
transformou na lagoa Doce, as águas encontraram caminho para alcançar o mar no
lado esquerdo da ponta do Retiro, enquanto a lagoa Salgada acumuluo grande
volume de água.
Córrego da
Lagoa Doce alagado e ultrapassando pequena barragem - dezembro de 2007
Córrego da
lagoa Doce rompendo obstáculos e chegando ao mar em 2007
Interesso-me por cheias e enchentes
desde os anos de 1970. Acompanhei enchentes e estiagens na região. Eu não
morava em Campos em 1966, quando ocorreu a mais intensa enchente do século XX
na bacia do Paraíba do Sul. A água sempre exerceu fascínio sobre mim, ainda que
na forma de fenômenos climáticos devastadores. Água é vida. Com as enchentes,
aparecem logo espécies animais que estão desparecendo ou que se tornaram raras,
como jacarés, lontras, iraras, capivaras, como pude presenciar na enchente de
1997 na lagoa da Onça, margem esquerda do rio Muriaé.
Com relação a São Francisco de
Itabapoana, as últimas vezes que presenciei grandes enchentes foi no final do
ano de 2007 e entre 2008 e 2009. Nem mesmo a enchente de 2012, a última de
grande porte que aconteceu no noroeste e norte fluminense, não afetou São
Francisco de Itabapoana. Atualmente, quando chove um pouco mais, ocorrem
alagamentos pontuais, mas a secura predomina.
Acúmulo de água
na lagoa Salgada em 2007
Lagoa Salgada
em 2007
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