A MORTE EM VÃO DO PARAÍBA DO SUL
Folha d
Manhã, Campos dos Goytacazes, 19 de janeiro de 2020
A morte
em vão do Paraíba do Sul
Arthur
Soffiati
Se um doador de sangue perde 2/3 numa transfusão em
benefício de uma pessoa que não precisa tanto assim, o doador morre em vão,
pois o receptor, além de receber mais sangue do que o necessário, é um contumaz
consumidor de drogas pesadas que contaminam o organismo. Um provérbio chinês
diz: “Um peixe mal preparado deu sua vida em vão”.
Pela barragem de Santa Cecília, o
antigamente pujante Paraíba do Sul doa 2/3 do se sangue ao pequenino rio Guandu
a fim de abastecer a cidade do Rio de Janeiro com água potável. A grande
estação de tratamento de água do Guandu (ETA) aproveita menos da água que é transposta.
Ela é também usada pelas indústrias instaladas na bacia do Guandu, além de ser
intensamente poluída por esgoto urbano e por rejeitos industriais. O sangue do
Paraíba do Sul oferecido aos cariocas está saindo com cheiro, cor e gosto não
correspondentes à água potável. A CEDAE, que faz o tratamento, contudo, garante
que o sangue é bom.
Cientistas da Universidade Federal do Rio de
Janeiro alertam sobre a grande poluição que sofre a bacia do Guandu por
lançamento de esgoto e resíduos industriais. Esses dejetos provocam o acúmulo
de matéria orgânica em decomposição, que estimula a produção excessiva de
cianobactérias, principalmente. Elas geram geosmina e o 2-metilsoborneol, que
conferem odor e sabor à água. Mas ninguém fala de onde vem a água do Guandu.
Em resumo, o Paraíba do Sul cede
dois terços do seu sangue para que ele seja poluído no Guandu e maltratado pela
CEDAE. Todos perdem: o Paraíba do Sul quase morre depois da transfusão e a
população do Rio de Janeiro recebe água de má qualidade. Mais ainda: a
transposição de água do Paraíba do Sul em Santa Cecília fragmentou o rio em
dois. Atualmente, o primeiro Paraíba do Sul nasce na Serra da Bocaina, como
aprendemos nos livros de geografia, mas desemboca agora na baía de Sepetiba
através do rio Guandu. A nascente do segundo coincide com a nascente do
Paraibuna de Minas e foz em Atafona. Essas novas informações precisam ser
divulgadas. Os dois Paraíba do Sul são ligados por uma vala estreita e poluída entre
a barragem de Santa Cecília e a cidade de Três Rios, onde o Paraibuna de Minas
e o Piabanha, desembocam no Paraíba do Sul II.
Em 1785, o capitão-cartógrafo Manoel
Martins do Couto Reis informava que a foz do Paraíba do Sul era problemática para
a entrada e saída de embarcações. Era preciso esperar a maré alta e os ventos
favoráveis para navegá-la. E, nessa remota data, a bacia do Paraíba do Sul era
coberta por vastas florestas, não tinha suas margens tão ocupadas por lavouras
e pastos, não era densamente urbanizada nem tinha os leitos dos rios barrados
para a geração de energia elétrica e para outros fins. Sobretudo, não tinha 2/3
de suas águas transpostos para outro rio.
A bacia hoje sofre muitos problemas.
O mais grave deles é, sem dúvida, a transposição de Santa Cecília. Com a perda
de vazão, na foz, o equilíbrio já instável entre mar e rio tornou-se mais
acentuado. O aproveitamento do antigo rio Água Preta para a abertura do canal
do Quitingute desativou os braços auxiliares de Gruçaí e Iquipari. O conjunto
das obras de drenagem desativou também a lagoa do Açu. Todos integravam o
grande delta do Paraíba do Sul. Nas estiagens, o rio desaguava por dois braços:
o de Atafona e de o de Gargaú. Nas enchentes, por cinco. Atualmente, apenas
pelo de Gargaú. O de Atafona se fechou por insuficiência do rio em mantê-la
aberta e por força do mar em fechá-la.
E a água transposta para o Guandu
está sendo muito poluída pela urbanização desordenada e pelas indústrias. A
estação de tratamento do Guandu carece de reformas e de modernização. A
despoluição do Guandu está orçada em 1,4 bilhão de reais. Entende-se que a
cidade do Rio de Janeiro não tem fontes de abastecimento para consumo público e
não pode mais prescindir do rio Guandu. Por extensão, a cidade não pode mais
viver sem o rio Paraíba do Sul. No entanto, o sangue que o Paraíba transfunde
para o Guandu está sendo contaminado e não agrada os consumidores de água da
cidade do Rio. O sistema deve ser repensado. O uso das águas do Paraíba do Sul
deve ser otimizado em todos os lugares onde é usada. A cidade do Rio de Janeiro
deve pagar royalties pela água que usa do Paraíba do Sul. O volume transposto
deve ser reduzido e otimizado. Entende-se que houve descuido e desprezo com o
Paraíba e com todos os rios do Brasil no passado e ainda no presente. Já passou
o momento de um grande trabalho conjunto de revitalização. Segundo a ONU, dois
terços dos rios do mundo estão barrados. Eles não correm mais livremente. Não
têm mais o mesmo volume. Revitalização não é uma simples proposta de
ambientalista, mas uma premente necessidade econômica e social.
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